E fazendo minhas pesquisas sobre, encontrei este artigo e não lembro em qual site, mas achei bem explicativo. No final deu tudo certo, "não é nada tenso apresentar um seminário para mais de 90 pessoas" rsrsrs.
1 Considerações iniciais
O processo de reforma psiquiátrica no Brasil tem sido pauta de
inúmeras discussões, dado o reconhecimento da falência do modelo
hospitalocêntrico que anteriormente a esta Reforma predominou. Entendemos que a
reestruturação da assistência psiquiátrica implicou na reorganização do
processo de trabalho da equipe multiprofissional em saúde mental, com a
construção de alternativas diversificadas de atenção. Inerente a isto está a
prática da enfermagem psiquiátrica que, para ultrapassar os limites da visão
reducionista de doença mental e atingir o modelo proposto pela Reforma,
precisou passar por um processo de flexibilização de posturas adotadas, a fim de
alcançar práticas renovadas de cuidado. Isto posto, delimitamos a seguinte
questão: quais mudanças na prática da enfermagem se evidenciaram em uma
instituição pública psiquiátrica do Rio de Janeiro em decorrência da Reforma
Psiquiátrica?
Assim, investigamos as mudanças na prática da enfermagem
psiquiátrica sob a ótica dos profissionais de enfermagem que atuaram em um
hospital pSiquiátrico público no Rio de Janeiro, no período compreendido de
1990 a 2001.
Para operacionalizar o estudo, definimos os objetivos: identificar
as características da prática da enfermagem psiquiátrica sob a ótica dos
profissionais de enfermagem que atuaram em uma Instituição Psiquiátrica Pública
do Rio de Janeiro durante a Reforma Psiquiátrica, e analisar as mudanças na
prática da enfermagem no processo da Reforma Psiquiátrica, sob a ótica dos
profissionais que atuaram nesta instituição.
Os estudos que tratam da prática da enfermagem psiquiátrica
apresentam reflexões sobre seu ensino e sua prática no Brasil, apontando para
necessidade de avanços dessa prática e do modelo assistencial(1-3).
Trata-se de um estudo de natureza histórico-social. A história social como abordagem que busca formular
problemas históricos específicos quanto ao comportamento e às relações entre os
diversos grupos sociais"(4:48).
Delimitamos como marco temporal a Conferência Regional de Caracas para
Reestruturação da Assistência Psiquiátrica na América Latina (1990), fato
histórico no campo da saúde mental, e a 111 Conferência Nacional de Saúde
Mental (2001), acontecimento significativo no processo da reforma psiquiátrica
brasileira.
Os sujeitos da pesquisa foram profissionais de enfermagem que
atuaram em uma instituição psiquiátrica pública no Rio de Janeiro no período de
1990 a 2001 que, em sua trajetória no campo da saúde mental, vivenciaram em sua
prática o processo da reestruturação da assistência psiquiátrica no Brasil.
Realizamos o contato com a instituição que serviu de cenário, a
fim de obter autorização para realização da pesquisa. Uma vez autorizada, dirigimo-nos
aos profissionais que ainda atuam na instituição. Utilizamos a narrativa destes
profissionais como fonte de pesquisa, empregando a técnica do gravador tendo
como suporte a entrevista semi-estruturada. Foram encontrados oito informantes,
dos quais quatro auxiliares de enfermagem e uma enfermeira concordaram em
participar.
Utilizamos, como fontes secundárias, documentos sobre a Reforma
Psiquiátrica, quais sejam: leis e relatórios finais das Conferências Nacionais
de Saúde Mental, bem como de artigos e livros que versam sobre a história do
Brasil, política de saúde mental, Reforma PSiquiátrica e a prática da
enfermagem psiquiátrica.
Uma vez concluída a coleta das informações, passamos então para a
análise dos dados. Primeiramente, cada relato transcrito foi submetido a uma
minuciosa leitura no sentido de tomarmos contato com sua estrutura. Em seguida,
realizamos o fichamento dos relatos por temas e procedemos com o mapeamento das
informações obtidas, que se deu através da revisão de cada ficha, onde os
fragmentos selecionados foram reunidos por temas. A seguir, foram estabelecidos
elos entre as informações obtidas nos depoimentos e as fontes secundárias.
Deste modo, resgatando o discurso dos profissionais, foi possível
descrever uma parte das mudanças que vem sofrendo a prática da enfermagem no
interior de uma instituição psiquiátrica, entrelaçadas ao contexto
político-social do Brasil na década de 90 do século XX.
A década de 90 foi marcada por modificações na organização social,
política, econômica e jurídica do país. Eleito em 1989, Fernando Collor de
Mello assumiu a presidência da República em março de 1990. Suas promessas foram
a moralização política, o fim da inflação e a aplicação de uma política
neoliberal no Brasil. Seus alvos eram os funcionários públicos marajás" e a privatização de empresas estatais.
No dia seguinte a sua posse, o presidente lançou seu programa de
estabilização financeira, o Plano
Collor,baseado em um bloqueio quase total dos ativos financeiros das
pessoas físicas e jurídicas, no congelamento temporário de preços e salários e
na reforma monetária. A sociedade brasileira ficou estarrecida com tais
medidas, pois com isso quebrava promessas de campanha, como, por exemplo, a de
não mexer no dinheiro popular(5,6).
Esse ataque à inflação foi acompanhado por medidas duras, como a
demissão de funcionários públicos e extinção de autarquias, bem como a redução
drástica de tarifas de importação brasileiras, abrindo a economia nacional à
competição externa e facilitando a entrada de mercadorias e capitais
estrangeiros no país.
Em 1991, as dificuldades encontradas pelo Plano, que não acabou com a inflação,
começaram a enfraquecer o governo. Seu programa econômico estava se desfazendo.
A ministra da fazenda, Zélia Cardoso de Mello, tentou um segundo tratamento de choque, mas era tarde demais. A aposta do
governo na quebra das expectativas inflacionárias havia sido perdida(5).
No decorrer de 1991 o presidente e seus colaboradores tornaram-se
alvos de uma implacável investigação. Em 26 de maio de 1992, o Congresso
Nacional instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar as
denúncias de irregularidades. Surgiram manifestações populares em todo o país.
Os estudantes organizaram diversas passeatas pedindo o impeachment do Presidente(5.6).
Após a apuração e confirmação das denúncias, a Câmara dos
Deputados aprovou o impeachment em 29 de setembro de 1992. Depois,
o Senado Federal, em 29 de dezembro de 1992, condenou Fernando Collor ao
afastamento do cargo de presidente e suspensão de seus direitos políticos por
oito anos. Pela primeira vez na história do Brasil, um presidente brasileiro
fora removido do cargo, não por golpe ou ultimato militar, mas por votação
pacífica no Congresso Nacional. Collor estimulou a classe política a provar que
podia estar à altura de sua responsabilidade constitucional(5,6).
Nesse momento, o vice-presidente Itamar Franco assumiu a
presidência. Este era um político menor, jamais
considerado presidenciável" (5309). No campo econômico, o governo
enfrentou sérias dificuldades, tendo sido as questões mais urgentes a inflação
e o desemprego. O presidente Itamar Franco designou o então senador
Fernando Henrique Cardoso para o Ministério da Fazenda. Este anunciou seu plano
de estabilização econômica no final de 1993, o Plano Real, implantado ao longo
de 1994(6).
No final do mandato, Itamar Franco apoiou a candidatura do
ministro da fazenda Fernando Henrique Cardoso à Presidência da República, que
se apresentou à disputa eleitoral como o idealizador do Plano Real. O sucesso do plano e a queda da
inflação deram vitória a Fernando Henrique no primeiro turno das eleições.
Nos primeiros três anos de governo, Fernando Henrique tinha como
prioridade a estabilização da economia, promovendo com isso a queda da
inflação. Em um aspecto, o governo Fernando Henrique conseguiu uma vitória para
os brasileiros mais pobres: o rápido declínio na inflação aumentou o poder
aquisitivo médio de consumidores que lidavam apenas com dinheiro (como os
pobres), porque a deterioração de sua renda entre as datas de pagamento era
agora menor. O maior aperto, no entanto, foi sentido pela classe média,
atingida pelo aumento de preço nos não-permutáveis,
isto é,
os bens e serviços que não estavam sujeitos à competição de preço
dos substitutos importados. As despesas que mais sobrecarregaram essa classe
foram aluguel, mensalidades escolares, refeições em restaurantes e todos os
serviços pessoais(5:321).
Na saúde pública, o Sistema Único de Saúde encontrava-se em
processo de aprimoramento da atenção e da gestão em saúde, e apresentou
dificuldades em garantir o acesso pleno da população aos serviços de saúde.
Acrescido a isto, a massificação da propaganda dos planos de saúde levou as
pessoas mais favorecidas a optarem por esta modalidade assistencial. Desse
modo, o governo promoveu a regulamentação dos planos de saúde, procurando
evitar distorções e abusos contra estes consumidores. A implantação de
medicamentos genéricos também marcou esta etapa do governo, visando reduzir o
monopólio das grandes indústrias farmacêuticas.
2 A reforma psiquiátrica brasileira
O processo de Reforma Psiquiátrica, que ocorreu nos países
ocidentais após a Segunda Guerra Mundial (1939-45), vigorou no Brasil a partir
da década de 90 do século passado. Este movimento solidificou-se com a
Conferência Regional de Caracas para Reestruturação da Assistência Psiquiátrica
na América Latina, convocada pela Organização Mundial de Saúdel OMS e pela
Organização Pan-Americana de Saúde/OPAS, onde foram analisados os seus
antecedentes políticos, históricos e técnicos. Durante esta Conferência, foram
abordados os princípios jurídicos em que se deve basear a formulação de
políticas e programas para o atendimento aos usuários dos serviços de saúde
mental, propondo reformulações para o atendimento(7).
O documento norteador do processo de reforma da assistência em
Saúde Mental foi a Declaração de Caracas. aprovada por aclamação nesta
Conferência no dia 14 de novembro de 1990, onde organizações, autoridades de
saúde, profissionais da saúde mental, legisladores e juristas se comprometeram
a promover a reestruturação da atenção psiquiátrica. Este documento sinaliza
que a assistência psiquiátrica convencional não permitia alcançar os objetivos
compatíveis com um atendimento comunitário descentralizado, integral e
participativo, e que o hospital psiquiátrico, como única modalidade
assistencial, impedia de alcançar os objetivos propostos.
Uma das causas que levaram a assistência psiquiátrica a buscar a
reformulação de suas ações foi a pouca eficácia das internações manicomiais, as
denúncias de violação dos direitos humanos e os efeitos do asilamento. Além
disto, essas internações requeriam grande parte dos recursos financeiros
destinados aos serviços de saúde mental.
A reforma psiquiátrica no Brasil contou com a influência do
processo legislativo sobre as políticas de saúde mental, sobretudo com a
aprOvação da Lei n° 10.216, de 6 de abril de 2001. A qual redireciona o modelo
da assistência psiquiátrica, regulamenta cuidado especial com a clientela
internada por longos anos e prevê possibilidade de punição para a internação
involuntária arbitrária e/ou desnecessária(8).
As Conferências Nacionais de Saúde também têm constituído papel
fundamental na implementação da reforma psiquiátrica brasileira, aprofundando
críticas ao modelo hospitalocêntrico, considerado ineficaz e oneroso para os
usuários e a sociedade.
Sob a influência das diretrizes da VIII Conferência Nacional de
Saúde (1986), a I Conferência Nacional de Saúde Mental (1987), evidenciou o
impasse do modelo centrado no hospital. Por sua vez, a 11 Conferência, em 1992,
formalizou o esboço de um novo modelo assistencial, não só na lógica,
conceitos, valores e estrutura da rede de atenção, mas também na forma concreta
de lidar com as pessoas com experiência de transtornos mentais, a partir dos
seus direitos de cidadanial9J.
Nos anos que se seguiram, diversas experiências e iniciativas
foram realizadas nos campos assistencial, jurídico e cultural, demostrando a
viabilidade de um modelo substitutivo ao hospital pSiquiátrico(9).
O Ministério da Saúde, aliado à reestruturação da assistência
psiquiátrica, com vistas a consolidar este processo convocou a 111 Conferência
Nacional de Saúde Mental para o ano de 2001. O tema central desta vinculou-se
ao proposto pela OMS, a saber: Cuidar
sim. Excluir não. - Efetivando a Reforma Psiquiátrica com acesso, qualidade,
humanização e controle social, buscando
efetivar e consolidar um modelo de atenção em saúde mental que seja humano, de
qualidade e com participação e controle social.
3 A prática sob a ótica dos profissionais de enfermagem
psiquiátrica
A primeira tentativa de sistematização da enfermagem psiquiátrica
brasileira tem origem no ano de 1890, com a fundação da Escola Profissional de
Enfermeiros e Enfermeiras, anexa ao Hospital Nacional de Alienados, no Rio de
Janeiro, ligada à assistência aos doentes mentais (hoje Escola de Enfermagem
Alfredo Pinto, da UNIRIO). Algumas dificuldades foram citadas nos momentos
iniciais da escola,
apontando primeiramente sobre a compreensão e atuação do Estado na
questão da doença mental através da exclusão e testagem de teorias bizarras
naqueles que, supostamente, não mereciam cuidados mais qualificados ou, pelos
menos, humanizados(10:230).
Em 1923, também na cidade do Rio de Janeiro, foi introduzida a
Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública, dando início à
enfermagem moderna, ligada ao desenvolvimento da Saúde Pública, mantendo-se
esta afastada da psiquiatria até meados da década de 40(10).
A obrigatoriedade do ensino da enfermagem psiquiátrica foi
determinada pela Lei n° 775 de 1949, que estabeleceu para a segunda série do
curso o ensino de Enfermagem e Clínica Neurológica e Psiquiátrica. Porém, mais
de 50% das Escolas não conseguiam oferecer estágios por falta de condição nos
campos de prática. Torna-se evidente, neste contexto, que por razões técnicas
e/ou morais, a enfermagem moderna somente a partir do final da década de 40
começou a se aproximar do doente mental e ver nele alguém que deveria - ou
poderia -receber uma assistência qualificada que este novo paradigma de
formação e prática de enfermagem introduzira no Brasil desde os anos 20(10).
Na década de 60, a enfermagem psiquiátrica vivia uma etapa difícil
em sua história. A falta de profissionais habilitados para aturar no campo da
saúde mental parece ser a principal discussão da época. Na enfermagem 90% do
pessoal que militava nos hospitais psiquiátricos não tinham condições culturais
e emocionais para proporcionar conforto e segurança àqueles sob seus cuidados(11).
A inserção dos profissionais nos serviços de saúde mental, no
final dos anos 80, parece ser ainda determinada pela garantia de sobrevivência
e pela falta de opção de trabalho em outros serviços de saúde.
Quando eu fui chamada não havia vaga em nenhum outro lugar a não
ser nos hospitais psiquiátricos? Eu tinha que escolher entre três institutos. Na verdade eu não queria
psiquiatria. Nesse meio tempo em que eu fui chamada pelo concurso eu já tinha
terminado o curso de auxiliar de enfermagem e no curso eu
não vi psiquiatria. A prática não. Eu não tinha expectativa nenhuma em ir para
psiquiatria, mas essa era a única opção. Você procurando emprego [...]
precisando de dinheiro (D1).
O ingresso no hospital psiquiátrico foi direcionado pela
necessidade de conseguir emprego e não uma escolha profissional pela
psiquiatria, tal qual acontecia nas primeiras décadas do século XX(12).
A situação acima retrata uma experiência coletiva e reaparece na
maioria dos discursos, levando-nos a concluir que a inserção profissional na
enfermagem psiquiátrica não constitui uma escolha pela especificidade da
prática, mas uma falta de opção na escolha do emprego.
Eu comecei na prática da enfermagem psiquiátrica contra minha vontade.
Na época, eu fiz um concurso público e pedi pra ser lotada em clínica médica,
era o que eu gostava de fazer, mas não me deram escolha. Disseram que eu iria
para o Instituto Psiquiátrico, se quisesse. Então cheguei aqui sem gostar de
psiquiatria. [...] Quando entrei aqui foi com essa idéia. Foi muito ruim o
primeiro dia. Eu fui imposta aqui. Era pegpr ou largar. Então não via com bons
olhos a minha entrada aqui. Não depois de tantos anos de enfermagem lá fora.
Quando eu soube que ia lidar com doente mental eu entrei em desespero. Teve uma
pessoa que falou pra mim que só poderia acontecer duas coisas depois que eu
viesse: ou eu endoidava de vez ou aceitava a situação. Eu aceitei (D2).
A enfermagem ainda colhe
os frutos" da psiquiatria comprometida com uma visão reducionista de doença
mental, da rigidez de um compromisso teórico e de uma visão dogmática em
relação à loucura. Os resultados de velhas práticas foram refletidos no
cotidiano dos profissionais de enfermagem, como a questão das enfermarias fechadas
e superlotadas, que encontramos nos anos 90 e o papel de guarda" desempenhado por longo tempo pela
enfermagem.
O que eu via era realmente horrível [...] as enfermarias eram
todas trancadas. Hoje, em uma enfermaria que você coloca 20 pacientes, na época,
tinham 40, 50 trancados ali. O pronto socorro com 30 pacientes. Imagina 30
pacientes trancados num espaço pequeno com 2 pessoas [profissionais} era super
complicado (D1).
Eram todos trancados aqui, com portas fechadas a trinco e cadeado.
Um auxiliar com trinta pacientes aqui dentro (D3).
O nosso cuidado, basicamente, era manter o paciente medicado e
vigiá-lo constantemente (D5).
No início da década de 90, o trabalho desenvolvido pelos
profissionais de enfermagem ainda apresenta características compatíveis como
modelo assistencial asilar, onde a assistência da enfermagem era realizada
quase exclusivamente no interior dos hospitais psiquiátricos, sob rígida
disciplina para o cumprimento de regras, onde a enfermeira é coroada pelo seu
perfil de observadora e exigente(12).
Não obstante, como revelam os depoimentos, a questão da abordagem
violenta ao cliente também subsiste até o início da década de 90. Podemos
perceber, através dos discursos dos profissionais, que a forma com que a
assistência da enfermagem era realizada no interior dos hospitais psiquiátricos
apresenta traços de uma prática que segregava e excluia o doente mental e o
ignorava enquanto cidadão.
Teve uma cena que até hoje eu não esqueço. O paciente já estava
contido, todo amarrado, nós entramos no elevador e lá dentro, meu colega,
supostamente mais experiente, fez assim: na maca baixinha ele pegou o pé e deu
no peito do paciente. Eu perguntei: - porque você bateu? Ele já estava
amarrado! E ele respondeu: - os
pacientes têm que respeitar a gente, vai aprendendo desde já, você tem
que se fazer respeitar. Eram os
meus primeiros dias. Aí eu fiquei chocada com aquilo (D1).
As freqüentes denúncias de violação dos direitos humanos
fortaleceram os debates acerca da necessidade da criação de novos modelos de
assistência em saúde mental, reconhecendo a falência do modelo centrado no
hospital, e a necessidade de se humanizar o atendimento oferecido(13).
A prática da enfermagem, no início da última década, empreendida
no serviço de saúde mental, indica que a assistência ainda permanecia pautada
na medicação e em procedimentos disciplinares arbitrários. Com efeito, condutas
como a supermedicação, o eletrochoque e a contenção dos pacientes eram
realizados de forma indiscriminada com o intuito punitivo ou para obter a
obediência dos internados às regras impostas pela equipe.
Os pacientes eram diferentes dos pacientes de hoje. Eram aquelas
pessoas correndo e gritando pelo corredor ou então impregnados de medicação que
mal conseguiam ficar de pé. [...] Quando o paciente dava muito trabalho a gente
logo medicava. Cansei de dar a medicação primeiro e depois pedir ao médico pra
carimbar. Era assim. O que importava era parar o paciente. Outra coisa também
que a gente fazia muito era amarrar o paciente. Paciente deu trabalho? Amarra ele.
E o eletrochoque? Que coisa horrível! Eu levava os pacientes pra aquela sala de
tortura, os pacientes ficavam se contorcendo, tendo convulsões e babando por
causa do choque. Já fiz isso várias vezes. Algumas vezes como forma
terapêutica, outras como forma de castigar (D4).
Toda aquela agressividade me chocava muito [...] aqueles empurrões
[. .. ] banho às cinco da manhã [...] paciente ficar trancado [...] era
horrível (D1).
Essa posição exorbitante assumida pela enfermagem favoreceu alguns
excessos e abusos de poder. Se, por um lado, as torturas explícitas não mais
existiam, deram lugar a formas de violência disfarçadas, como ameaças e
privações. Referimo-nos aqui às imposições de horários para o banho, às filas
para tomar a medicação, às práticas de confinamento indistinto, como a
proibição de visitas, de passeios ao pátio e de acesso aos bens pessoais(3).
A prática da enfermagem comprometida com a reestruturação da
atenção psiquiátrica defendida pelo movimento da Reforma, aqui caminha lado a
lado com aquela em que os portadores de transtornos psíquicos eram subjugados
por uma prática inadequada e pouco eficaz.
O abandono dessas práticas e a desconstrução desse processo
fizeram-se necessários para que a enfermagem conseguisse despontar para novas
possibilidades assistenciais e tornasse concreta a melhora da qualidade da
assistência prestada.
4 As mudanças na prática da enfermagem psiquiátrica
A motivação, que acompanhou o que se convencionou chamar Reforma
Psiquiátrica Brasileira, fez com que a prática da enfermagem passasse de
custodial para uma assistência onde se compreende o enfermeiro como agente
terapêutico capaz de restituir a qualidade de vida das pessoas com transtornos
psíquicos, sob seus cuidados. Acerca disto:
Observa-se que os primeiros tempos foram marcados pela tentativa
de construir uma nova posição para a enfermeira e auxiliares de enfermagem,
deslocando-se da posição historicamente atribuída e assumida de vigia e
repressor para uma posição de agente terapêutico envolvido com a concepção, a
realização e a reflexão sobre o tratamento proposto aos clientes destes então
chamados novos serviços(3:21).
Essa proposta de mudança começou a concretizar-se com a
constatação de que a assistência prestada pela enfermagem não dava conta de
cuidar do doente mental, de modo a favorecer a melhora de sua qualidade de
vida. Foi preciso, assim, romper com antigas práticas e dar lugar a um novo
modo de agir e de pensar. Essas mudanças só foram possíveis a partir da
superação dos antigos modelos de assistêncía, para construção de novas
propostas. A capacitação dos profissionais de enfermagem engajados nesse
processo em formação foi fator que influenciou a equipe em suas concepções e
práticas. Os depoimentos a seguir revelam essa contribuição para este novo panorama
da saúde mental:
Em um determinado tempo, apareceu aqui uma professora de
enfermagem oferecendo uma nova psiquiatria, pela ótica de Paulo Delgado. Então
eu comecei a fazer cursos para entender melhor a psiquiatria, saber lidar com o
cliente, respeitando sua vontade. Fiz curso de psicofármacos que foi oferecido
aqui pra entender melhor o porque da medicação. Quando começou a Reforma
Psiquiátrica no Brasil e o pais começou a ver a psiquiatria por outro ângulo,
foram oferecidos cursos que eu fui fazendo. E muita gente fez. Isto tudo, pra
mim, trouxe melhora até para o auxiliar de enfermagem (D2).
Depois de Paulo Delgado aconteceram tentativas em mudar a
psiquiatria. Eu fui encaminhado pra Santos, onde já existiam os CAPS [Centro de
Atendimento Psicossocial], que é fruto da psiquiatria moderna. Eu aprendi multa
coisa lá. Aprendi a lidar com o c~ente. Entendi que ele tem autonomia.
Presenciei, inclu);ve, a interação da equipe multiprofissional (D3).
A possibilidade de capacitação trouxe para os profissionais múltiplos
olhares que favoreceram a construção de uma prática diferenciada em relação à
saúde mental. O exercício da interdisciplinariedade passou a fazer parte dos
seus discursos, bem como a concepção do doente como um ser singular, possuidor
de autonomia e parte interativa de uma rede social, porém não afastou destes
profissionais o medo subjacente ao estigma do louco(3).
As mudanças sinalizadas pelos sujeitos vão da compreensão do
relacionamento terapêutico às questões referentes ao processo de abertura das
enfermarias, ao estudo das doses da medicação, às mudanças no diálogo com os
pacientes e no espaço físico, como facilitadoras desta nova proposta
assistencial. Os trechos a seguir revelam a percepção dos depoentes em relação
às transformações advindas com o movimento da Reforma:
Houve uma mudança. A gente teve oportunidade de trabalhar com um
diretor que começou a forçar a enfermaria aberta. E daí foi melhorando a
qualidade da assistência. Aconteceu também uma reforma no espaço físico que,
como já falei, era multo ruim. As enfermarias ficaram mais arejadas. Depois
disso tudo nós vimos a melhora. [...] a interação com o paciente mudou. A gente
já pode atuar com o paciente de uma outra forma. Acalmá-Io com palavras,
conversando ... Já é aceito que você faça isso (D2).
A questão da medicação mudou também. Antes nós tínhamos um quadro
grande de pacientes impregnados. Hoje, um melhor estudo sobre a dosagem da
medicação ... Essa redução fez a pessoa expressar-se melhor. Você a entende
melhor (D3).
Algumas coisas na enfermagem foram mudando [...] a questão do
plantão de 24h em enfermaria fechada [...]. Aqui começou a se discutir
humanização, trabalho em equipe. [...] começamos todo um processo de abrir as
portas das enfermarias,
colocar espelho em todas elas [...]
o paciente começou a comer de garfo. [...] Realmente mudou. Hoje em dia a
contenção é só com prescrição. Houve uma mudança de mentalidade da equipe de
enfermagem em relação ao paciente. Acho que as pessoas estão entendendo o que é
relacionamento terapêutico. A gente jlá avançou bastante. Aquela fala ríspida
com o paciente deu lugar a uma fala mais pra igual (D1).
A mudança de posição do profissional de enfermagem, de alguém cujo
objeto de cuidado era a doença, para agente terapêutico capaz de intervir junto
ao cliente, investindo em sua singularidade e respeitando-o enquanto sujeito(3),
foi um dos grandes passos dados pela enfermagem para a consolidação desse
processo que vem sendo construido ao longo dos anos, e que favorece a retomada
da condição de cidadão ao portador de transtornos psíquicos.
Contudo, apesar dessas mudanças, ainda vivenciamos os reflexos dos
efeitos negativos das regras asilares manejadas pelo profissional de
enfermagem. Assim os prejuízos legados à enfermagem
psiquiátrica são enormes e podem ser sentidos fortemente no panorama dramático
da assistência à saúde mental que tentamos modificar"(10:234).
5 Considerações Finais
O estudo nos permitiu identificar que, embora o discurso da
Reforma Psiquiátrica já existisse no início dos anos 90, a assistência prestada
pela enfermagem ao doente metal, nessa época, ainda permanecia compatível com o
modelo segregador, excludente e violento denominado asilar. Estas distorções
contribuiram com a resistência dos novos profissionais que chegavam para trabalhar
na instituição psiquiátrica, declarando não ter optado pela área, o que
provavelmente tornava a reforma psiquiátrica mais difícil.
Os cursos para capacitação dos profissionais foram necessários
para que se começasse a formar uma nova visão e posicionamento crítico da
enfermagem em relação a sua práxis. Ainda assim, para dar sustentação às novas
formas de cuidar, é preciso ter bem definido o papel da enfermagem dentro da
equipe multiprofissional, principalmente a dos auxiliares.
Isto nos leva a concluir que o profissional de enfermagem tem
avançado em direção a este novo paradigma, que propõe a reestruturação da
assistência psiquiátrica. Contudo, para atingir as propostas reformistas é
necessário não mais reproduzir o pensamento, o fazer, enfim, toda cultura
manicomial. Isto, porém, é tarefa árdua, visto que derrubar formas de pensar e
agir tão arraigadas no cotidiano destes profissionais implica no compromisso
com a transformação da assistência. Para isso, faz-se necessário enfatizar a
relevância da contribuição de cada um nesta nova forma de assistir.
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